A chuva sempre forte continua a fustigar. Tamborila a chapa canelada de zinco a cobrir o posto de sentinela, alcandorado no centenário embondeiro. O motor do gerador da luz continua a roncar. Sempre forte e monótono. A alvorada ténue faz distinguir já a silhueta dos edifícios das casernas.
De repente, amanhece em África!
Bebemos uns copos, – largos! – como é costume nas vésperas das grandes operações. Avançaram até as reservas: – as garrafas de whisky que cada um tinha escondido nos seus quartos.
O tenente-capelão dava o gelo e a bênção para cada rodada.
Eram dez horas quando, meio tonto, entrei naquilo a que me tinha acostumado a chamar de meu quarto. O capitão da CCS roncava, como era costume. Às escuras deitei-me.
Penso que dormi umas duas horas.
Acordei com um terrível pesadelo. A chuva grossa cai desamparada sobre as folhas de zinco do barracão. De repente, parou. A cama foi ficando cada vez mais pequena. Os roncos do gordo capitão são cada vez maiores. O silêncio da África é absoluto. O calor é húmido e peganhento. A insónia, clara e deprimente. Como seriam os próximos dias?
Só Deus poderia saber. Esse Deus que há anos ignorara estava agora ali bem perto e eu quedava-me mudo, sem coragem para lhe falar e muito menos, pedir o que quer que fosse. Pareceria mal só me lembrar Dele quando me sentia à rasca!
O suor ficou gelado. Tenho frio em África!
Mas os soldados, os meninos grandes que eu desmamara? E as famílias que tínhamos deixado? E a Pátria que havia que defender? E a incerteza da batalha que teríamos todos de afrontar? Pelo menos para esses, Misericórdia Senhor!
E se eu morrer? É sempre trágico morrer-se aos vinte e seis anos!
Que frase mais idiota! Mas, vendo bem, pouca falta faria. O meu pai tomaria conta do rapaz e ela, nova e bonita, seguiria o seu caminho. Havia choros, recordações e a certeza de que teria morrido com dignidade. Ao menos isso! Fora esta a vida que escolhera. Eram estes os frutos que ela dava. Tudo menos ter ou revelar que, no fundo, o que tinha era medo. Só os perus morrem de véspera! Mas seria mesmo assim? E o malvado sono que não chega. A merda da cama está toda encharcada de suor.
Tenho medo. Levanto-me. Tenho de arrumar as minhas coisas. Se, por acaso... há que deixar tudo mais ou menos arrumado.
O gordo ressona e peida-se. Nunca fez cerimónia! É assim na caserna, – disse. De noite dorme com um pijama riscado, que julgo nunca ter sido lavado. De manhã veste a camisola interior, cavada e sem alças, que diz ser muito boa para prevenir constipações.
Parece que voltei às camaratas do colégio. Mas este nunca poderia ter lá andado. É velho demais. Sobretudo na alma. Não há dúvida: – podia ser meu pai! Rebola-se, ronca e sonha, e, amanhã, dirá que não conseguiu dormir e continuará a chatear-me porque as rações de combate não estão certas, e eu terei de pagar as que faltam no depósito do reabastecimento da sua, – dele – CCS. Ele pensa ser o dono da guerra. Se calhar, é mesmo! Pelo menos é o dono das rações de combate. Bem pode o Valente dizer-lhe que vem na ordem de operações, mas dali, do seu depósito de víveres, não sai nada sem requisição. Está dito e bonda!
Põe na tal requisição a soberana assinatura ou um estranho gatafunho como visto, e aponta, sempre com um lápis, – tirado da orelha, – no caderninho que trás no bolso da perna das ensebadas calças de serviço.
Já arrumei tudo. Afinal é muito menos do que pensava. Só falta atar o cordel nas malas, para depois lhe porem o lacre. Meses depois as embambas[1] chegarão ao meu pai, como está escrito nos papéis confidenciais da guerra que todos nós assinamos, por se acaso...
De repente, amanhece em África!
De repente, amanhece em África!
Bebemos uns copos, – largos! – como é costume nas vésperas das grandes operações. Avançaram até as reservas: – as garrafas de whisky que cada um tinha escondido nos seus quartos.
O tenente-capelão dava o gelo e a bênção para cada rodada.
Eram dez horas quando, meio tonto, entrei naquilo a que me tinha acostumado a chamar de meu quarto. O capitão da CCS roncava, como era costume. Às escuras deitei-me.
Penso que dormi umas duas horas.
Acordei com um terrível pesadelo. A chuva grossa cai desamparada sobre as folhas de zinco do barracão. De repente, parou. A cama foi ficando cada vez mais pequena. Os roncos do gordo capitão são cada vez maiores. O silêncio da África é absoluto. O calor é húmido e peganhento. A insónia, clara e deprimente. Como seriam os próximos dias?
Só Deus poderia saber. Esse Deus que há anos ignorara estava agora ali bem perto e eu quedava-me mudo, sem coragem para lhe falar e muito menos, pedir o que quer que fosse. Pareceria mal só me lembrar Dele quando me sentia à rasca!
O suor ficou gelado. Tenho frio em África!
Mas os soldados, os meninos grandes que eu desmamara? E as famílias que tínhamos deixado? E a Pátria que havia que defender? E a incerteza da batalha que teríamos todos de afrontar? Pelo menos para esses, Misericórdia Senhor!
E se eu morrer? É sempre trágico morrer-se aos vinte e seis anos!
Que frase mais idiota! Mas, vendo bem, pouca falta faria. O meu pai tomaria conta do rapaz e ela, nova e bonita, seguiria o seu caminho. Havia choros, recordações e a certeza de que teria morrido com dignidade. Ao menos isso! Fora esta a vida que escolhera. Eram estes os frutos que ela dava. Tudo menos ter ou revelar que, no fundo, o que tinha era medo. Só os perus morrem de véspera! Mas seria mesmo assim? E o malvado sono que não chega. A merda da cama está toda encharcada de suor.
Tenho medo. Levanto-me. Tenho de arrumar as minhas coisas. Se, por acaso... há que deixar tudo mais ou menos arrumado.
O gordo ressona e peida-se. Nunca fez cerimónia! É assim na caserna, – disse. De noite dorme com um pijama riscado, que julgo nunca ter sido lavado. De manhã veste a camisola interior, cavada e sem alças, que diz ser muito boa para prevenir constipações.
Parece que voltei às camaratas do colégio. Mas este nunca poderia ter lá andado. É velho demais. Sobretudo na alma. Não há dúvida: – podia ser meu pai! Rebola-se, ronca e sonha, e, amanhã, dirá que não conseguiu dormir e continuará a chatear-me porque as rações de combate não estão certas, e eu terei de pagar as que faltam no depósito do reabastecimento da sua, – dele – CCS. Ele pensa ser o dono da guerra. Se calhar, é mesmo! Pelo menos é o dono das rações de combate. Bem pode o Valente dizer-lhe que vem na ordem de operações, mas dali, do seu depósito de víveres, não sai nada sem requisição. Está dito e bonda!
Põe na tal requisição a soberana assinatura ou um estranho gatafunho como visto, e aponta, sempre com um lápis, – tirado da orelha, – no caderninho que trás no bolso da perna das ensebadas calças de serviço.
Já arrumei tudo. Afinal é muito menos do que pensava. Só falta atar o cordel nas malas, para depois lhe porem o lacre. Meses depois as embambas[1] chegarão ao meu pai, como está escrito nos papéis confidenciais da guerra que todos nós assinamos, por se acaso...
De repente, amanhece em África!
O motor da luz parou.
JS
(cont)
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